Estética também é luta: a importância das tranças na história da resistência negra no Brasil
- Gabriela Isaias
- 2 de dez. de 2018
- 4 min de leitura
Do topo da cabeça à ponta dos dedos, mulheres negras dão continuidade a uma das formas mais antigas de resistência escrava da qual têm-se apenas indícios: as tranças africanas

Cabelo “ruim”, “duro”, “pixaim”, “sarará”, “bombril”, “de vassoura”, “carapinha”, “de
bandido”, “bucha”. Quantos termos pejorativos para se referir ao cabelo crespo você
consegue enumerar? Nove foram os nomes que Andreia Cardoso, 45, listou antes de
desistir da contagem: são inúmeros os insultos e outras expressões depreciativas que ela já
ouviu sobre seus cabelos.
Trancista profissional há 15 anos, Andreia guarda na lembrança o tempo em que sua mãe
trançava seus fios e também os das suas cinco irmãs. Ela conta que ainda na infância
aprendeu a trançar os cabelos das mulheres de sua família, como parte de uma tradição
feminina: “A minha avó trançava o cabelo das minhas tias, minhas tias trançavam o cabelo
das filhas, minha bisavó trançava o cabelo da minha avó”, recorda.

A prática, comum entre as famílias negras, é, para a trancista, uma herança natural. “Em
algumas comunidades africanas as famílias se reuniam pra poder fazer penteados, uns
trançavam os cabelos dos outros. É um ritual que resistiu até os dias de hoje”, afirma
Andreia.
Séculos, um oceano Atlântico e novas histórias separam as tranças de hoje daquelas
elaboradas em solo africano. A técnica é a mesma. A estética das três mechas trançadas
também é bastante parecida. Mas os significados dos penteados elaborados pelos povos
negros no Brasil são recriados a todo o tempo.

Não é preciso olhar para um passado muito distante: 130 anos atrás o tráfico negreiro ainda
era legalizado no Brasil; há cerca de quatro ou cinco gerações as mulheres da família de
Andreia ainda eram escravas. E, assim como tantos dos 5,5 milhões de africanos
escravizados no país desde os primeiros anos de seu descobrimento, é possível que os
ancestrais da trancista também utilizassem táticas de guerra e códigos de mensagens para
sobreviver à fase mais sombria da história nacional.
Jogar capoeira nas horas vagas até que seja preciso usá-la para salvar a própria vida.
Sabotar plantações na calada da noite. Tornar São Jorge Oxóssi, ver em Santa Bárbara
Iansã. Fugir, suicidar-se, esconder. Organizar quilombos onde a violência não seja o
sistema principal, mapear a liberdade na cabeça. Através da resistência, muitas vezes
silenciosa e transmitida de geração em geração, que foi formada uma rede de comunicação
entre os escravos da qual tem-se apenas indícios.
Luta silenciosa
Gabriela Azevedo, 31, trancista desde os 15 anos e criadora do projeto Trança Terapia,
afirma que a dificuldade em descobrir as raízes das histórias ancestrais acaba
transformando fatos históricos em “contos”. Ela conta que os penteados eram
frequentemente usados para transmitir mensagens entre os negros escravizados: “Eles
usavam as tranças como códigos de comunicação”, explica.

Como as mulheres escravas eram percebidas como uma ameaça menor do que os homens,
elas não eram constantemente fiscalizadas e podiam andar de forma um pouco mais
independente. Desse modo, enquanto caminhavam pelos arredores da cidade, acabavam
mapeando trajetos de fuga que mais tarde seriam tecidos em forma de trancinhas rasteiras
no couro cabeludo de seus colegas. “Quem conseguisse voltar para resgatar outras pessoas
tinha a rota de fuga para o quilombo desenhada na cabeça”, diz Gabriela.
A trancista lembra também que, por manterem os cabelos mais longos que os homens, é
sabido que algumas mulheres negras usavam as tranças para esconder sementes, ouro e
outros artefatos que pudessem ajudar na sobrevivência dos escravos que fugissem.
Herdeiras da resistência
“Toda mulher preta quando olha pra uma trança consegue ver um pouco da sua história
ali”, diz Tiara Mello, 31, enquanto usa o pente para riscar a raiz dos cabelos de uma
cliente, formando uma divisão triangular. “Os penteados de raiz nos conectam com aquilo
que nós somos. E nós somos africanos em diáspora, somos produtos da África também.
Nós somos as tataranetas das negras que eles não conseguiram escravizar”, completa.

Estudante de Direito na Universidade Estácio de Sá, Tiara explica que muitas pessoas –
principalmente da cor branca – não compreendem muito bem a importância das tranças na
vida de uma mulher negra. A trancista conta que o penteado não só faz parte da infância de
muitos afrodescendentes, como também foi importante para a retomada do orgulho estético
afro que floresceu nos últimos anos. “Com a trança a gente consegue se ver representado, é
como se a gente tivesse transmitindo o que a gente tem de melhor e ajudando um irmão
nosso a enxergar o que tem de melhor dentro dele”, diz.
O processo de recriação e empoderamento da própria imagem é um assunto recorrente
entre Tiara e suas clientes já que, para a trancista, se auto-afirmar é mais do que ter um
cabelo crespo ou carregar consigo artefatos estéticos da cultura negra. “Empoderar é você
entender que o seu corpo é político e que quando se é negro, você é político o tempo todo:
você já nasce militando e vai militar pra sempre”.

Para Tiara, mais importante que o visual de um cabelo trançado, é o processo de trançar, o
ato de cuidar do outro: “A trança não é só um penteado, é muito mais que isso”. Segundo a
trancista, quando uma negra usa tranças ou assume o próprio cabelo crespo, mostra ao
mundo que está consciente de sua história. “Quando a gente trança a gente tá reproduzindo
o que as nossas ancestrais fizeram, a gente tá resistindo”, conclui a moça, que logo se
corrige: “Na verdade a gente tá re-existindo”.
Essa reportagem foi adaptada para a Maria Mag. O conteúdo completo você encontra aqui.
Comments